Pôs-se a sentar no sofá com o dedo indicador marcando a mesma página trinta e dois da qual não sairia, sobre a mesa de centro, na qual estavam cruzadas suas duas pernas finas e descobertas, um velho cinzeiro retangular com um peculiar mapa do Brasil ainda com algumas guimbas de cigarro e, logo ao lado, um antigo vinil de Dave Brubeck ou algo assim. Na televisão passava Zelig, esses filmes com Woody Allen o deixavam tão confortável naquela saleta com a janela quebrada, o sofá já desbotado e o tapete, esse novo, espesso e macio, que Allen chegava a ter um papel maternal em sua vida; porém não prestava atenção em uma palavra do filme, as legendas passavam pelos seus olhos estáticos como transeuntes na Uruguaiana, sem serem notadas, agora ele só tinha uma coisa em mente.
Lembrara-se das palavras dela entre soluços: "Você realmente pensou uma idiotice dessas?". A verdade é que ele nunca se sentiu um par apropriado para ela e o fato de ignorar qualquer sinal de interesse que viesse da parte dela tão rigidamente que o fazia agir como um padre era zelo para com o seu pobre coração. Pobre como sua blusa manchada, como sua meia furada, pobre como ele mesmo. Seu relicário, que passara a maior parte do tempo vazio, agora a tinha, seus sorrisos, suas histórias, sua cara de boba, essa era a maior riqueza que ele já havia conseguido e era na verdade muita coisa para quem não possuia nada. Por que um camponês começaria uma revolução se agora já tinha um pedacinho de terra para sua subsistência?
Era ela a subsistência dele: todos os dias seu despertador tocava às quatro e meia da manhã Bistro Fada e quase sempre não havia mais do que dois dedos de leite para acompanhar o café, pensar nela o fazia abstrair de todas as sacolejadas do 384 ou das cotoveladas compulsórias que receberia e até mesmo da rotina chata do trabalho, seu chefe, um cinquentão de óculos que nunca conseguira nada além de uma casa própria na bairro de Bento Ribeiro no subúrbio do Rio e um carro Renault, que havia comprado novo, mas estava sendo usado fazia aproximadamente dois anos, se julgava um grande homem, de feitos mitológicos.
Ao bater o portão, ele sempre observava o céu ainda escuro e estrelado, achava bonito, por vezes tivera vontade de se livrar da opressão gravitacional e cair no espaço sideral. Era nesses raros momentos de liberdade que ele fazia planos, embora no fundo ele mesmo os achasse incredíveis, o divertiam mais do que qualquer peça ou filme; ele se imaginava morando em Paris, escrevendo romances, deitado na cama depois de meio dia e, é claro, abraçado com ela. Apenas abraçado, pois para ele a sexualidade não era a protagonista nas relações amorosas, gostava de passear de mãos dadas, de dividir um sorvete de casquinha e todas essas coisas tolas que os namorados costumavam fazer.
Passado algum tempo, ele riu inconscientemente lembrou-se dos dois cantando na chuva uma música da jovem guarda, era Olha do Roberto Carlos, mas ele não conseguia lembrar-se claramente da letra; lembrou-se depois do choro dela ao descobrir que o motivo da indiferença de seu admirador era a diferença deles, das palavras de carinho dela e de como ela lhe mostrava interesse e admiração, do jeito que ela o escutava tocar violão, com olhos atentos a lhe fitar. Então sorriu docemente. Por alguns momentos em seu íntimo havia a certeza de que nada seria mais normal do que realmente ela estar apaixonada por ele.
De repente ele saiu do transe, foi interrompido pelo telefone, estendeu o seu braço e o pegou com as pontinhas dos dedos médio e anelar, o trouxe para si e olhou quem o ligava àquela hora: era ela. Estaria também ela pensando nele? "Não. Isso já é loucura", pensou. Tirou os pés de cima da mesa e logo se pôs a ajeitar o corpo no sofá. Pensou em como cumprimentá-la, pensou em forçar uma rouquidão para encantá-la, olhou novamente para o telefone e, com um suspiro, o desligou. Novamente estendeu suas pernas, as colocou sobre a mesa de centro e voltou a pensar nela.